Observe-se bem a capa deste disco. Observe-se, porque é uma oportunidade, quiçá única, de presenciar um talento também ele singular. José consegue transformar o acto de lhe partirem a bilha, e gostar, numa tragédia pouco mais que residual. Um pormenor que se dilui de forma instantânea num mar de desgraças. Pode-se começar pela decoração, pela enigmática disposição dos equipamentos. Não é por acaso que aquela planta selvagem está quase que a camuflar o nome de José Ângelo em espanhol. Trata-se claramente de uma metáfora sobre o facto de o verdadeiro José Ângelo estar ainda enevoado pela selvajaria incapaz de reconhecer a diferença do próximo. Ou então não é nada disto e trata-se tão-somente de uma péssima opção gráfica. Seja como for, quer se trate de uma metáfora, quer se trate de uma opção em termos gráficos, estamos perante uma tragédia. Mas é a própria imagem de José a assumir protagonismo central nesta capa. Claramente. A camisa, semi-havaiana, semi-que merda de padrão é este que até parece ter para ali uns barcos à vela ao contrário e umas árvores de natal. O mocassin de cor café, secundado pela meia de marcado tom “encardido-deslavado”. Até a mítica calça branca lá está. Basicamente, uma conjugação de cores que faria corar o próprio Aquaman. E que dizer do relógio de José Ângelo? Já não se via um Casio desde que as pastilhas Gorila deixaram de ter aquela colecção dos capacetes de Fórmula 1. Aliás, estou equivocado. Vi um Casio recentemente, e se não era cuspido e escarrado do do José Ângelo, era um modelo parecido, numa daquelas pessoas que, feitas parvas, se vestem como um pica do metro. Sim, com camisa de manga curta, cor branca mas com ténues linhas vermelhas verticais, calça azul de “tecido”, sapato escuro e uma daquelas pastas que levam papéis, facturas e recibos da água. Esses gajos têm quase sempre um Casio.
Já o seu duplo queixo, de José Ângelo, entenda-se, não é ainda monstruoso, embora, e em compensação, José possua um daqueles vincos no pescoço que o fazem parecer estar a usar uma cabeça que não é sua. Aliás, a cabeça de José Ângelo é, também ela, enigmática. A cabeça do José Ângelo é tal e qual a do João Broncas, logo, tem o aspecto de um daqueles gajos capazes de arrotar e, acto contínuo, se deliciarem com o sabor das amêijoas que comeram há dois dias. Mas é um João Broncas em triste. Em meditabundo. A olhar para o infinito. Um João Broncas sofredor. A naturalidade da pose de José também tem que se lhe diga. É a pose padrão para se poder ocupar a montra de um daquele estúdios fotográficos com vitrinas atulhadas de fotografias da crisma e copos de água de desconhecidos. Pode não parecer, mas estas poses, de que a de José Ângelo é um exemplo, são criteriosamente ajustadas pelo fotógrafo. Eu bem me lembro de ir tirar fotografias tipo passe a estes estúdios e o fotógrafo fazer o caminho “eu-câmara fotográfica”, e vice-versa, vezes sem conta só para me ajustar a disposição do braço/mão/cabeça/perna. Repare-se que, na disposição corporal de José, está ainda presente o incompreensível “cruzar de pernas que aperta sem necessidade nenhuma”. Não faz sentido que, existindo um cruzar de pernas tão perfeito como aquele em que se apoia o tornozelo na rótula – sendo que o seu único senão é ao nível do rápido adormecimento da perna suspensa, mas, quanto a isso, basta ter cabecinha e gerir bem as trocas de membro apoiado/de apoio –, ainda haja uma canalha obscura que prefere um cruzamento de perna que, quer funcionalmente, quer visualmente, é terrível.
É por tudo isto que José Ângelo é um génio. Sim, porque se eu, quando parti o candeeiro da sala, tivesse sentado no sofá tal e qual como está o José, a minha mãe, quando chegasse, repararia em tudo menos no candeeiro. Por exemplo, desde que meti os olhos nesta capa, tenho pensado em tudo menos na opção de vida do José Ângelo. Pouco me importa. Estou abominado com outras coisas. Com a mãe de José Ângelo, está claro, ter-se-á passado o mesmo. Por exemplo, alguém no seu perfeito juízo é capaz de deixar de, nem que seja por uma meia horita, meditar com afinco sobre aquele aviso de Stereo, ali no canto esquerdo? Como em todo e qualquer pormenor desta capa, levantam-se logo uma enormidade de questões. Para que é que está lá? Será assim tão decisivo? Quem comprou isto, não compraria em Mono? Havia muita gente no posto de gasolina ou no café do campanário onde isto se vendia a dizer “Ah, caraças, se houvesse isto em Stereo!”? Ninguém sabe. E, pronto, verdade, verdadinha, é que o José Ângelo lá se safou dum ralhete dos grandes por ter aparecido em casa com a bilha partida.
said...
Só faltou mesmo a descrição do sofá, que não consigo perceber se é de vime com apliques bordados, ou tipo poltrona acolchoada com padrão em vime. Será que o fotógrafo não tinha coisa melhor... (talvez um espeto!)
Bom, sempre é melhor que aquela história do José Cid e o seu disco de ouro, porra!
said...
Gostei da tua teoria, mas eu tenho outra, um pouco diferente.
O José Ângelo tinha algo importante a dizer à sua mãe, mas não sabia como, então, num rasgo de genialidade, elaborou, criteriosamente, esta capa, se não vejamos:
Claramente o José Ângelo tem ascendência árabe (vê-se na cara do homem!!!) e ele tinha que fazer, não uma revelação bombástica, mas duas revelações: 1) Mãe eu sou cristão (o que, para uma idosa muçulmana, é fatalmente ultrajante) e 2) Mãe eu sou homossexual (bom, se a criatura ainda estivesse viva, deixaria de o estar naquele preciso momento).
Assim sendo, o José Ângelo, depois de demorada reflexão, teve a ideia de fazer esta capa (absolutamente inqualificável, digo eu!!), desviando a atenção do assunto central. Deste modo, a reacção da sua mãe seria:
- Eh pá, és cristão, é mau, mas ainda se atura. Tá bem, és homossexual, enfim! o que para aí não falta são homossexuais!!
Agora! Um mau gosto destes para decoração!! Nem a tua mãe atura, ...da-se!!
(Não há dúvidas!!)