O corpo humano é uma coisa fascinante, defende um dos mais sólidos e imemoriais chavões. Há mesmo quem diga que será a derradeira e inequívoca prova que Deus existe. A criação divina por excelência. Uma máquina portentosa onde duodeno, jejuno, sigmóide, epitélio supercial, cécum e exócrino, entre outros belos nomes para dar a um filho, coabitam e laboram, e onde se verificam ocorrências como gastroenteroanastomoses, vascularizações hepáticas ou anastomoses dos ramos jejunais. É um sentimento bonito, o fascínio. Infelizmente, e por muito factual que seja, essa adjectivação – fascinante – não se poderá nunca estender a todo o corpo humano. Ou, pelo menos, não se estenderá num sentido totalmente positivo, de coisa racional ou que, enfim, acabe por dar jeito a alguém. Por exemplo, o corpo humano é um sítio onde, se não se tiver cautela, pode acontecer um corrimento mucoso ou mucopurulento pela uretra. Este é o mais comum sintoma da doença provocada pelo gonococo, esse biltre, que não tem outro nome. E mucopurulento quer dizer que tem muco e pus. Ao mesmo tempo. Com que então, fascinante, hã? Uma pila a pingar mucopurulências que, leio agora, podem assumir cores tão variadas e galhofeiras como o amarelado, o esverdeado ou mesmo uma tonalidade parecida com a da clara do ovo? Sim, até encerrará algum fascínio, mas sempre num sentido nauseante. Como ver um cão a comer o interior de uma fralda. O Tom Cruise a comer a placenta da filha. Ouvir, demasiado perto, uma daquelas pessoas que tem os cantos da boca sempre cobertos com uma espuma branca. Imaginar a Teresa Guilherme a desovar enquanto come chispes de coentrada empapados em mel e pasta de sapateira. Tudo isto também fascina, e a gente até olha, mas só porque mete nojo.
Espurcícias à parte, muitas coisas há no normal funcionamento do corpo humano que não fazem sentido nenhum. E uma das coisas que me chateia a sério assume contornos mais que absurdos. Indo directo ao assunto: porque é que raio o corpo humano permite que se espirre quando se está, como dizer, a mijar? Isto não cabe na cabeça de ninguém. Porque é que o corpo humano, se é tão perfeito, divino e, lá está, fascinante, consente esta absurda ocorrência? Quando nos apercebemos que está para acontecer, bem, é das piores sensações que se pode ter, se não a pior. Barbaramente aflitivo, tomamos consciência que, afinal, somos de facto muito pequeninos e que nada temos sob controlo. A situação é simples e fácil de contextualizar. Sabemos que estamos a direccionar um jacto de urina para o local adequado. Concentrados, preocupados em nem pingar as bordas da sanita e, às vezes, sem sequer fazer pontaria ao desinfectante WC Pato. Tudo corre bem. Mas eis que surge a sensação única. Caraças, quer-me parecer que vem lá um espirro! Olha, vem mesmo! Eu vou espirrar! E eu ainda nem vou a meio disto, pá! Não vou conseguir acabar a tempo! Vai haver simultaneidade! Vai haver concomitância de acções de despejo que não têm qualquer tipo relação entre si a não ser a circunstância de, vá lá ver, serem ambos actos evacuatórios! São uns segundos do mais tormentoso que pode haver. Se bem que isto, que eu saiba, se aplica exclusivamente aos homens. Melhor: a homens que mijam em pé. Sim, porque há muitos homens que não mijam em pé. Deficientes e assim. Convém ainda clarificar, porque muita gente não sabe isto, que direccionar a urina pode parecer uma tarefa mais fácil do que realmente é. Não é, confesso, nada de extraordinário, se, claro, nos cingirmos àquelas alturas em que o órgão expelente está numa dinâmica mais amorfa. Defensiva, vá. Porque se, por mero acaso, se estiver a falar do acto mictório enquanto o órgão encarregue de expelir a urina está em posições de ataque, a conversa será sempre completamente diferente. Nessas situações, não há domínio perfeito possível. É um ver se te avias. É como uma daqueles mangueiras dos bombeiros que fica descontrolada. Só dá mesmo para tentar minorar os estragos o mais possível. Mais que isso será sempre um esforço inglório.
Seja como for, dizia eu, a ocorrência de um espirro enquanto se urina é um fenómeno angustiante e aflitivo para quem mija em pé. Sentado, este problema não se coloca. Essencialmente porque espirrar enquanto se mija é sinónimo de uma salganhada do caneco. Significa que perdemos sentido posicional e direccional. Não há hipótese de, durante aquele mísero segundo, durante o curtíssimo espaço de tempo que demora um espirro, a pila não se tornar - também aqui, embora de forma muito mais intensa e rápida - na tal mangueira dos bombeiros que fica descontrolada ou num daqueles aparelhos de rega dos jardins. Um espirro durante tão corriqueiro acto é como se, de repente, nos víssemos num rodeo, a tentar, do alto de um daqueles touros que estão sempre muito aborrecidos com qualquer coisa, acertar com o esguicho num balde. Como se depreenderá, “acertar” deixa de ser opção. Passa a ser uma completa utopia. Se isto não fosse já suficiente, o espirro é também um fenómeno que tem o condão de nos obrigar, sempre, a fechar os olhos. Ou seja, ainda por cima, esfuma-se logo aí qualquer hipótese de saber, nem que fosse assim por alto, para onde raio foi o mijo desgovernado. Como não sei para onde foi, por norma acabo por estabelecer um perímetro de verificação; isto é, uma zona que perscruto no sentido de encontrar poças desconexas ou mesmo simples pingos. De, convém não esquecer do que se está aqui a tratar, mijoca. A zona deliberada, não sendo rigorosa e adaptando-se sempre à envolvente em questão, deve andar pelo metro e meio para os lados e cerca de 90 cm para a frente (chão e, se for caso disso, paredes). É nesta zona que procuro e é esta zona que limpo. Sim, ignoro por completo tecto e retaguarda e posso orgulhosamente dizer que nunca me dei mal. E por falar em orgulho, eu, valha-me Deus, nem sou um daqueles que espirra compulsivamente, que não consegue só espirrar uma vez. Daqueles a quem vêm sempre uma dezena de espirros, em cadeia, tipo rajada de metralhadora. Esses, quer dizer, se calhar até têm que tomar banho quando isto lhes acontece enquanto mijam. Eu, até ver, ainda só tenho que limpar as zonas afectadas da casa de banho. Enfim, espirros enquanto mijo são sempre acontecimento que acabam por remeter para o dia em que tive a infeliz ideia de despachar a micção enquanto lavava os dentes. Foi a pior maneira de descobrir que, mesmo inconscientemente, o meu corpo tinha tendência para seguir os movimentos da escova.
said...
Então e se, suponhamos, isso do espirro acontecer num urinol público? Será que as diferentes posturas de urinol influem na intensidade catastrófica da coisa? É que se a zona afectada pode ir do metro e meio para os lados, isso é situação para dar molho, não?
J. Salinas said...
Por isso é que eu sempre digo que, num urinol, mais vale ficar perto do velho mirone que do gajo que funga e tem um lenço todo ranhoso no bolso de trás.
said...
rsrsrsrsr! mto bom seu post...
said...
Graças ao seu texto fiquei com os olhos lacrimejantes e com dores abdominais... Agora quero saber quem vai pagar a conta hospitalar e acima de tudo quem vai pagar a conta psiquiátrica, visto que me senti verdadeiramente patético enquanto chorava em frente a um monitor. São coisas que causam danos irreversiveis.