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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Verdades absolutas sobre basicamente tudo.
All great truths begin as blasphemies.
Nem mais. Porra. 

28 de abril de 2006

Louie, this could be the end of a beautiful friendship…












E pronto. Diz que é já no próximo ano que vou ver aniquilado um fiel companheiro de muitas calendas. Sem dó nem piedade. Atira-se borda fora como uma testemunha de Jeová com escorbuto. Só porque vai aparecer um novo e melhor para o substituir. Como se nada fosse. Como se fosse o Luís Pereira de Sousa ou a Serenella Andrade. Está mal. O Bilhete de Identidade, esse amigo de sempre, merece, a meu ver, uma despedida consentânea com o importantíssimo papel que, durante décadas, desempenhou, não só na minha vida, como na de tantos e tantos portugueses. Entretanto, vai ser trocado pelo Cartão do Cidadão, essa galdéria que atraiu quatro cavaleiros do apocalipse para o seu leito – o BI, o cartão do Serviço Nacional de Saúde, o Cartão da Segurança Social e o Cartão de Eleitor –, para depois os fulminar, ocupando os seus honrosos lugares. É a morte anunciada de quatro documentos. Mas, lá está, de entre os quatro, há um que sempre se destacou sobejamente dos demais.

No meu tempo, fazia-se o BI quando se passava para o 5º ano. Era uma grande mudança. Íamos para o ciclo. Durante muitos anos, eu pensei que o critério fosse apenas esse: passar para o 5º ano. E fazer o BI era um prémio. No meu caso, foi um BI e uma BMX. Mas eu tinha muito boas notas. Simultaneamente, pensava que as pessoas com a 4ª classe, mesmo que já adultos e pais de gente, não tinham BI. Mesmo quando, mais tarde, descobri que não era bem assim, o meu fascínio pelo BI não esmoreceu patavina. É que, naquela época, eu tinha apenas dois documentos. Pelo menos que me passassem, mesmo que ocasional e fugazmente, pelas mãos. Eram eles, o, agora condenado, BI e o, inevitavelmente algo tortuoso, Cartão de Vacinas. E, pese embora o menor período de convivência, sempre gostei mais do BI. O cartão das vacinas sempre esteve muito preso à imagem das picas. Eu nunca gostei de picas. Além do mais, um cartão que só serve para levar picas não é, há que admiti-lo com toda a lisura, lá muito adulto. Por seu turno, o BI não dava chatices. Nem picas. Dava-nos, isso sim, um ar crescido. Responsável e respeitável. Era, em larga medida, um fato e gravata para crianças. A única forma de parecermos gente. Com ele, éramos, oficialmente, uns homenzinhos.

Até me lembro perfeitamente do dia em que fui fazer o BI. Foi no mesmo dia que vi o “Profissão: Duro”. Já no dia em que, pela primeira vez, pude segurar o meu BI, vi o “Tango & Cash”. E, embora estes filmes sejam inquestionavelmente muito conseguidos do ponto de vista artístico, as minhas referências positivas prender-se-ão sempre mais com as respectivas ligações temporais que acabaram por estabelecer com tão valioso documento. Para mim, serão sempre filmes que marcaram duas decisivas etapas na minha, desde então ininterrupta, posse e usufruto de BI. Bem, durante uns tempos, também foram os meus filmes preferidos com o Patrick Swayze. Mas isso foi porque eu o confundia com o Kurt Russell e pensava que era ele, Swayze, que estalava maus no “Tango & Cash”.

A minha afinidade com o BI foi, ao longo dos anos, sendo posta à prova. Logo com o primeiro BI, surgiu um teste de fogo. Possuía eu uma bela carteira casual, com a adorada temática Transformers. “O sítio ideal para guardar o meu novíssimo Bilhete de Identidade”, pensei com entusiasmo. Como era da praxe, o meu BI foi plastificado por um daqueles tipos do “Plastifico Qualquer Documento e Vendo Pentes, Corta Unhas e Atacadores” com estaminé montado no meio da rua. O problema começa quando constato que o indivíduo me fez aquilo um bocado largueirão. À balda. Com umas bordas enormes, e inerentemente supérfluas, em plástico. Uma tragédia! O BI não cabia na minha carteira com a temática Transformers! Independemente da posição, ficava sempre uma grande talhada de fora. E aquilo era feito com um plástico bastante perigoso. Muito rijo e laminado. Com o tagalho que ficava de fora, corria o risco de me cortar de cada vez que ia ao bolso das calças buscar a carteira. A verdade é que ainda me ceifei umas poucas de vezes. Os resultados do encontro da cútis e chicha da minha mão com aquela segadeira de algibeira eram muito parecidos com os dos cortes de papel. E aquilo ardia como o caraças quando eu comia batatas fritas cheias de sal. Aliás, em termos de dor, aquilo até seria assim mais parecido com ter uma afta, muito menos larga, mas também muito mais comprida, na mão. Uma chatice.

Tinha que fazer algo. E a verdade é que, em vez de deixar o BI perdido numa gaiva lá por casa, optei antes por deixar as carteiras. Sem hesitar. Nunca mais tive uma carteira. O Bilhete de Identidade passou a andar solto no bolso. Com maior à vontade, deixou também de me ir podando paulatinamente. Mantive-me fiel a um documento que, apesar do pouco tempo passado, já considerava um amigo. Um amigo que me conhecia bem. Sabia o meu nome. Dos meus pais. A minha altura, quando é que eu fazia anos e onde é que eu tinha nascido. Raios, sabia o meu estado civil antes mesmo de eu saber que porra era essa do estado civil. Naquela altura, mais nenhum dos meus amigos sabia o meu nome completo. Muito menos o dos meus pais. Notava-se o interesse. A dedicação para com o seu amo. Que sou eu. Assim como assim, a carteira, mais dia, menos dia, iria perder com o BI. Mesmo que eu tivesse mantido aquele cenário que me ia amputando aos poucos. É que eu nunca gostei muito de velcro. Essencialmente porque o velcro das minhas coisas gastava-se muito depressa. Perdia logo a aderência e aquele barulho tão característico. Era isso e línguas da sogra, que se me estragavam depois de meia dúzia de assopradelas. São as duas coisas cujo tempo de vida útil é ínfimo nas minhas mãos. Velcro e línguas da sogra.

A verdade nua e crua é que, em breve, cessa de existir o BI. Já não vamos poder gozar com aquelas pessoas cuja impressão digital parece ser do dedo grande do pé. Aquelas pessoas que, entre um coro de caçoada interminável, lá iam, chorosas, tentando justificar com uns “não é o dedo do pé! Eu é que mexi o dedo para os lados!”. E que vai acontecer ao célebre pedido “olhe, assine aqui como tem no Bilhete de Identidade”? Acabam simplesmente? Seja como for, estou certo que o BI não perece em vão. Não! O BI leva consigo alguns hábitos idiotas que, infelizmente, directa ou indirectamente, sempre o rodearam. Por exemplo, vai encalacrar o pessoal das carteiras de pai. O pessoal das carteiras de pai é aquela malandragem que pensa que já é muito crescidinha só porque tem uma carteira em pele de bovino a abarrotar com cartões e recibos. Cartões de, como dizer, tudo. Afinal, eles têm tantos cartões, não é verdade?, de certeza que são responsáveis e bastante maturos. Lérias. É um truque básico. Afinal, acaba o BI e outros três cartões. Cartões menores, é certo, quase marginais, mas que de certeza que os apologistas das carteiras de pai faziam questão de possuir. Pois bem, esse truque tem os dias contados.

Mas, sobretudo, vai acabar com os papalvos que pensam que aquele algarismo misterioso dos BI é, apenas e só, o número de pessoas com o nome igual ao do utente em causa. Assim uma espécie de curiosidade que os serviços de identificação civil resolveram dar aos seus filiados. Uma distracção para atenuar a espera pelo autocarro, por exemplo. Para esta gente, faz perfeito sentido que um António Silva não tenha uma única alma com quem partilhar o nome e que um Eládio Clímaco já possa ter nove gajos que vão olhar quando a mãe dele o chamar para jantar. Sim, o máximo parece ser nove. E ainda têm o desplante de dizer que conhecem não sei quem numa repartição qualquer que lhes assegurou que era mesmo isso. Fazem apostas. Enfim, é um circo completo.

O que sei é que não foi por estas pessoas que o Bilhete de Identidade foi criado. Nem por estas pessoas que o Bilhete de Identidade vai ser arrumado. Mas, afinal de contas, o extermínio destas pessoas, ou melhor, das suas teorias e manias, acaba por ser uma última ajuda que o BI nos consagra. A nós, aqueles que sempre lhe reconhecemos valor e sempre o soubemos compreender. Obrigado, amigo. Até sempre.


Blogger Telmo said...

chuiff o velho amarelo já não mora aqui (old yeller)  


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