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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Verdades absolutas sobre basicamente tudo.
All great truths begin as blasphemies.
Nem mais. Porra. 

2 de março de 2006

Incómodos da Modernidade (II): As velhotas missionárias



















Apesar de ter sido um parolo que empinava papagaios em noites de intensa trovoada, Benjamin Franklin era também um visionário. Disse o senhor, aqui há coisa de uma carrada d’anos, que só existiam duas certezas na vida; sendo elas o termo da existência e o pagar impostos até que este suceda. É verdade que o Benjamin também chegou a constatar que estava no auge da senilidade e a dizer desconchavos como “quem tem cabeça de cera não se deve passear ao sol”, mas o bitaite sobre as certezas na vida tem qualquer coisa de factual. Ter-se-á esquecido de uma outra certeza, tão ou mais autêntica que as referidas: o ser abordado por um velha que nos quer dar um panfleto com rezas e imagens de santos. São as velhas do “Jovem, posso-lhe oferecer uma coisa?” e representam igrejas menores no panorama religioso, quase sempre com nomes cinematográficos como “O Caminho de Jesus” ou contendo subtis ameaças como “O que Deus quer mesmo” e “Ai de ti que não prestes culto assim que depois Jesus conta-tas”.

Mais dia, menos dia, isto calha a todos. E o problema destes panfletos é o facto de ninguém ter coragem de os mandar fora. Porque pode “fazer mal”. “Dar azar”. Porque, sempre que alguém o fez, sempre que alguém reencaminha aquele papel no seu curso natural de convivência com outros detritos da mais variada espécie e feitio, a vida começa-lhe a correr mal. Ou melhor, sempre que alguma coisa corre mal, a pessoa lembra-se do papel religioso que atirou fora com o desprezo e sobranceria que caracterizam o homem bajulador da ciência. Subconscientemente, a pessoa sabe sempre que maltratou um recado de forças que o ultrapassam em larga escala e, perante o mais pequeno infortúnio, lembra-se disse mesmo e pragueja, num tom pré-choro que se aproxima perigosamente do estridente, “Fosca-se, para que é que eu mandei aquilo fora, porra?”. Acaba por ser essencialmente uma questão psicológica. Mas nem por isso menos chata.

Uma vez na posse do papel, não há volta a dar. Há que manter aquilo eternamente ou passá-lo, ao papel e a todo o drama que o acompanha, a outra pessoa. Sendo assim, o truque ideal seria livrar-se logo das velhas, impedindo-se que o papel consiga fazer o seu trabalho sujo. O problema é que é complicado livrar-se dessas velhas. Ao longo dos anos, desenvolvi a capacidade de as identificar a largas centenas de metros, o que, por incrível que pareça, só serviu para ver aumentado o tempo de sofrimento. É angustiante saber que vamos ser abordados com um “Jovem, posso-lhe oferecer uma coisa?” e não ser capaz de o evitar. Durante uns tempos, o meu truque foi adoptar o tradicional ar e andar “porra, pá, ‘tou cá c'uma pressa!”. Isto é, apressar o passo e, bufando constantemente, olhar para o relógio. É assim que se vê que as pessoas estão com pressa. Mas, para o efeito, está táctica não prima pela eficácia. O caraça das carcaças, não sei bem como, conseguem encurralar as presas com um apuro absurdo. Parecem leopardos à caça de antílopes. Embora seja tudo muito devagar – tão lento que sou capaz de jurar que se ouve o “Chariots of Fire” do Vangelis de fundo –, é complicadíssimo evitar uma destas velhotas sem ouvir a angustiante questão.

É verdade que, em princípio, bastaria dizer “não, obrigado!” à velhota e abalar. Mas não é assim tão simples. Estamos a falar de velhotas simpáticas e apessoadas, parecidas com a septuagenária do “Crime, disse ela…”, e não de senhoras que cheiram a coelhos mortos e para quem a padeira de Aljubarrota perderia facilmente o título de Miss Tísica. A essas é fácil dar uma cotovelada ou um rotativo e fugir dali para fora sem remorso algum. Agora, responder negativamente a uma velhota que, em termos de jovialidade e afabilidade, encosta a avó da Neoblanc a um canto, e que, atenção!, fala sempre num tom “estou às portas da morte e este é o meu último pedido”, é uma coisa completamente diferente. Dizer "não" é difícil, mas aceitar a porra do papel é entrar numa aflição considerável. Então, o que raio fazer? A minha opinião é que, não se conseguindo fugir à portadora do papel, o ideal mesmo é imaginar que ela nos pede outra coisa qualquer. Por exemplo, imaginar que ela nos pede autorização para explorar a nossa uretra com a sua fiel agulha de tricotar. Nesse caso, sim, é fácil espetar com um rotundo “não” na idosa, embora a automática justificação “que isso é coisa para infectar” as possa deixar confusas. E é mesmo isso que se quer. Depois, é só aproveitar o assarapantamento momentâneo da missionária, esquivar-se e correr que nem um louco, de preferência imaginando que a terra engole o chão mesmo atrás de nós.


Blogger Rantas said...

Tive a oportunidade de denunciar as suas actividades no http://revisao-da-materia.blogspot.com/.

Porque o que tem qualidade deve ser publicitado até que a voz nos doa.
Um abraço!  


Anonymous Anónimo said...

Se não coneço ninguém a quem dar os panfletos, aceito-os, dou uma vista de olhos e depois deito fora. A vista de olhos deve-se à curiosidade de ler outras ideias diferentes das minhas (o que, eu saiba, nunca vazou olhos a ninguém). Se conheço pessoas interessadas em ler o que estas velhinhas distribuem, aceito, dou uma vista de olhos e depois passo o testemunho.  


Blogger Victor de Souza Baptista said...

Ninguém fala de Maomé?  


Blogger J. Salinas said...

Sr. Rantas, os meus sinceros agradecimentos, mas não se vá agora aleijar a dizer bem desta betesga, homem. Aleije-se antes a agrafar um dedo só para ver como é. Olhe, eu sempre pensei que fosse pior do que é na realidade.

101, deita fora os panfletos? Isso é que é coragem. A única vez que fiz isso, o papel apareceu na minha almofada no dia seguinte e o vento suspirava qualquer coisa como “vamos partir do princípio que foi apenas um equívoco….”.

Victor de Souza, o Maomé foi à montanha. O caminho é o mesmo e, segundo parece, até era a vez dele.  


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