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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Verdades absolutas sobre basicamente tudo.
All great truths begin as blasphemies.
Nem mais. Porra. 

6 de abril de 2006

Telediscos do Sempre (I)

Pouca gente sabe disto, mas a prova final que o credo “o que conta é a intenção” não passa de uma léria, aquela que renega por absoluto essa máxima milenar, assume a forma de um teledisco. Recuem-se mais de 20 anos. O Live Aid ia conhecer a sua primeira edição, a qual, esperava-se, iria acabar com a fome na Etiópia e, mais importante que isso, por arrasto, com as anedotas que faziam mofa daquela delgada nação. David Bowie e Mick Jagger decidem participar em evento tão altruísta e, vai daí, resolvem protagonizar um dueto. E logo de uma canção que não era de nenhum deles. Ordenava a carga simbólica que estes dois vultos da música mundial entoassem algo que tivesse brotado de uma mente onde fervilhasse sangue africano. A primeira hipótese, “One Love” de Bob Marley, acabou por ser afastada pelos músicos britânicos, essencialmente porque era pouco alegre para combater a fome e incitava pouco ao movimento de anca, aquilo que, ver-se-ia mais tarde, era o que Jagger e Bowie realmente queriam fazer.

A segunda hipótese, “Dancing in the Street” de Martha and the Vandellas, pegou de estaca e, definido o tema, o projecto passava por ter, em pleno Live Aid, uma demonstração de tecnologia de ponta, que, bem vistas as coisas, é bastante adequado para se ajudar um país que está cheio de moscas, pó e atletas olímpicos das corridas grandes. A ideia passava então por ter Jagger, que estava em Filadélfia, e Bowie, que estava em Londres, a cantar em simultâneo, como aliás deve ser num dueto dos sadios. Só que, por vezes, o universo une-se para impedir uma tragédia. E foi o caso. A conexão por satélite implicava sempre um considerável atraso, facto que inviabilizaria o primeiro dueto intercontinental da história da música. Quer isto dizer que, bem antes daquele meteorito ter livrado o mundo do Bruce Willis naquele filme sobre não sei quê a bater na terra, já a humanidade tinha muito que agradecer a forças cósmicas. Infelizmente, nenhuma força foi suficientemente forte para impedir Mick e David de gravarem o teledisco. Um teledisco que, relembro, até serviria para compensar o facto de não se ter conseguido levar a cabo o tal dueto intercontinental. Um teledisco que, convém não esquecer, pretendia ser, apenas e só, mais uma mão amiga na luta contra a fome na Etiópia. Até isto acontecer, era a intenção que contava. Mas tudo isso iria mudar.


Asco. Nojo. Repulsa. Azedume. “Que desasseio é aquele que para ali vai?”. São estas as sensações que trespassam mente e corpo de quem se vê perante este sacrifício sob a forma de teledisco filantropo. Comece-se por onde se quiser, este “Dancing in the Street” é uma ode àquilo que mais sensações desagradáveis consegue provocar no ser humano. As danças, por exemplo. Em primeiro plano, Jagger a fazer uns assobios, enquanto gira com a ajuda de um varão, e a ter uns ataques epilépticos aos saltinhos, qual galinha sem cabeça. Bowie, mais pacato, lá mais atrás, com os seus “anda como um egípcio” e “moonwalking”, também aos saltinhos. Por outro lado, a monstruosidade das vestes fazem o Dia do Juízo Final parecer um feriado qualquer que calha à sexta-feira. Mick opta pela combinação explosiva, envergando camisa verde e calças roxas. Tudo numa espécie de velutina, mas naquela forma eternamente encarquilhada, que, sabe-se lá porquê, ainda se viu a cobrir bastantes indivíduos por aí há relativamente pouco tempo. David vai ainda mais longe. Opta pelo fato de leopardo. Numa primeira análise, pode parecer um fato de duas peças, de calça e camisa, tão normal como um fato de leopardo consegue ser. Mas, sinceramente, parece-me ser uma espécie de babygro mais largueirão e com um cinto só para disfarçar. Por cima deste cenário dantesco, e por causa da geada, uma gabardina em branco encardido. Por incrível que pareça, a vestimenta quase que passa que despercebida em determinados momentos. Nomeadamente aqueles em que Bowie, no cimo de umas escadas, dança com as mãos no bolsos, como se estivesse aflitinho para ir ao WC. Ou naquele saltinho em câmara lenta, e com a boca aberta, ao encontro do Mick.

E depois temos uma proximidade bucal que, a bem dizer, passa tão despercebida como uma retroescavadora no consultório de um proctologista. É coisa para assustar, para, ainda que, e graças a Deus, a um nível metafórico, nos imaginarmos como vítimas de empalação. Quando Mick e David aproximam as bocas, é impossível o nosso corpo não se retrair, é impossível não nos engelharmos grotescamente perante tal panorama. Aquilo é de tal forma intimidador que, quando os dois músicos optam por encostar as testas, somos invadidos por uma sensação de alívio semelhante àquela que nos invade a todos quando percebemos que aquele mendigo chato, o que, em busca de uns trocos, interpela e desafia as pessoas, está do outro lado da rua. E, quando um momento em que dois homens encostam as testas de forma ternurenta tem o condão de aliviar seja o que for, é sinal que o que ficou para trás é demasiado aflitivo para haver palavras que o descrevam.

Quem viu o teledisco original da Martha & The Vandellas sabe que não é propriamente complicado parecer mais feminino que as senhoras. Afinal de contas, elas parecem irmãos do Ru Paul, mas, David e Mick, também não era preciso exagerar, caraças. Já agora, para quem não sabia, há rumores de que Jagger e Bowie teriam, em tempos, jogado ao encaixa. Eles sempre negaram. E, para contrariar rumores dessa natureza, nada melhor que um teledisco como este “Dancing in the Street”. Um teledisco que, como se viu, depois de tão específicas danças, roupagens e daquilo das bocas, ainda consegue terminar com um plano dos seus quadris. A moral da história é que este teledisco está para a imaculada heterossexualidade dos dois senhores como o rancho de Neverland está para a de Michael Jackson. E, mais de 20 anos depois, a Etiópia continua com fome, continua a protagonizar anedotas e agora até ganha menos corridas daquelas grandes. Valeu a pena?


Anonymous Anónimo said...

desconhecia a asco e o q é um "babygro", de resto esta lamentável e lastimável produção "músico-sonóra" é tudo o q tu disseste e mais, muito mais. obrigado por não me deixares dormir na próxima semana. Pobres etiopes, por isso é q estão em greve de fome(viste +uma)  


Blogger papousse said...

Diz-se lá na aldeia que o jogo do encaixa metia (literalmente) o chocolate Mars.  


Blogger J. Salinas said...

Sim, diz quem sabe que, embora o Twix acabe por satisfazer duas vezes e o Kit Kat até permita parar a meio, o Mars sempre foi o preferido quando se tratava de encaixes.  


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