Adiante-se desde já, em abono da verdade, que ainda ontem ouvi um indivíduo dizer que a sua banda preferida é o Phil Collins. E, num ápice, percebi de que se trata afinal a combustão espontânea, esse fenómeno que lá vai mantendo a ciência moderna num estado de obscurantismo medieval. A combustão espontânea dá-se quando alguém verbaliza, ou simplesmente cogita, atrocidades do naipe de um “a minha banda de eleição é o Phil Collins”. É Deus que simplesmente se farta e manda arder a pessoa. Logo ali! Nem está para se preocupar com explicações lógicas, como doenças ou acidentes, que justifiquem o final de uma qualquer existência individual. Manda arder a pessoa e pronto. Não está para se chatear mais! Não foi para ouvir escabrosos dizer que o Phil Collins é uma banda que Deus criou o universo e mandou o filho vir morrer pelos nossos pecados. Ainda eu me queixo quando a minha mãe me manda ir à mercearia comprar couves. Bem mais severo foi Deus, que mandou o filho ir morrer pelos pecados dos outros. Se bem que ir buscar couves não é só a cena de ter que me mexer e interagir socialmente. Isso já me custa de sobremodo. A questão passa também por, indo buscar couves, já saber que, o mais tardar no dia seguinte, apanho com sopa ou migas ao jantar. Não é morrer na cruz, convenhamos, mas eu não gosto nada de sopa. Nem de migas. Agora, sempre que ouvir falar em combustão espontânea, já sei do que se trata. E, se chamado para investigar o fenómeno, vou tentar saber se a vítima tinha acabado de proferir alguma barbaridade ou se, por exemplo, tinha vestida uma t-shirt de gola alta. Vestir uma t-shirt de gola alta é coisa para enervar Deus ao ponto d’Ele nos combustar espontaneamente. Também já vi uma, em tempos idos. Branca. Ou branco deslavado, a caminhar para uma espécie de cinza. Manga curta e gola alta. Nunca vi um eclipse total, nem um mamute ou um pterodáctilo, mas é um facto que uma t-shirt de gola alta é igualmente deslumbrante. Quando os não crentes dizem “Ai sim? Deus existe? Então onde está Ele quando morrem aquelas pessoas em África e naquelas ondas grandes lá na terra daquele miúdo que recebeu uma camisola da selecção?”, eu acho que deviam é dizer “Ai sim? Então onde está Deus quando se vestem t-shirts de gola alta e se diz que o Phil Collins é a banda preferida?”. Não sei onde está. Sei que demora, mas não tarda. Vide explicação derradeira que formulei para a combustão espontânea. Para além do que já foi dito, muitas outras injustiças atulham este mundo que compartimos. Eu não sei até quando vou ter que apanhar com pessoas que andam na rua exactamente à mesma velocidade que eu. Decerto que tal ocorrência já se verificou com todos vós. Estão no passeio, a andar a uma velocidade constante e sã. Eis que percebem que, a vosso lado, seja imediatamente ali ao pé ou a escassos metros de distância, está uma besta que parece que faz questão de ir à mesma velocidade que vocês. Por momentos, parece que vão acompanhados. Por momentos, cria-se ali um clima de mau estar insuportável e, por momentos, o ideal de justiça que sustenta a civilização clama por uma combustão espontânea. Mas quem é este gajo? Eu não quero parecer que estou contigo, pá! Desaparece! Desopila! Ala daqui para fora! Andor! Uma vez que, nestas ocasiões, a combustão espontânea tarda em dar sinal, sou sempre eu que acelero o passo e ganho. Já tive que correr, mas paciência. Também nunca quebrei um contacto visual. Mas isso é porque não tenho nada para fazer e normalmente a outra pessoa tem que ir para o emprego e buscar os filhos e assim. Seja como for, apanho com cada chanfrado, daqueles que ficam minutos inteiros a olhar. Que cambada de sociopatas do raio. Sou muito forte em cenas de paciência e isso. Também nunca perdi um jogo de xadrez porque, logo que o adversário mexe o peão, eu fico a pensar na minha jogada durante horas a fio. Quando começam a dizer “então?”, eu, num misto de irritação e paternalismo, profiro um “shhhhta!”, para, acto contínuo, adoptar uma posição ainda mais absorta. Por norma, emulo na perfeição a posição d’O Pensador. Na perfeição implica, claro está, requintar a perfomance com a nudez que se exige. Para terminar, e porque isto é um coiso cultural, uma efeméride. Camarate faz 26 anos. Aproveito e transcrevo as palavras de um senhor que, também ontem, quando ficou a saber mais pormenores relativos ao trágico acontecimento, deu a seguinte materialização verbal à sua revolta: “O quê? O gajo ia de avião de Lisboa para o Porto?!?!? Fazer 300 quilómetros de avião? Olha qu’isto, hã? Fosse de autocarro, como toda a gente!”. Faltou concluir com o “Então foi bem feita!”, mas aquela expressão não enganava. Como diria um Dias da Cunha fundido com o Marx, é a luta de classes no seu esplendor.
Nelson said...
Diz-se "Atão foi bem feita" e não "Então foi bem feita". Com este tipo de comentários apenas mostras a tua incultura nos hábitos da populaça e isso não pode ser coisa boa se um dia te candidatas a deputado ou ministro ou coisa assim.
said...
Nelson pá, se tivesse comigo, eu tinha-lhe feito o que faziam antigamente às bruxas: punha-o amarrado a uma cruz em cima de um monte de lenha de azinheira - que arde mais devagarinho - e ficava a olhar à espera que ele entrasse em "combustão instatênea" sozinho.
E a isso dos Ministros, fazio o mesmo que é para aprenderem como é que é...
said...
Poças! Escreves mesmo bem.Sociólogo?
said...
O olhar "olhos nos olhos" é agressivo mas eu cá prefiro usar do "sorriso e da simpatia extrema" em repartições de finanças, bancos, centros de saude e discussões de trânsito. Funciona de forma brutal!
said...
Poças! Sociologas mesmo bem.Escritor?
said...
Rantas said...
Poças! Acho que já me cruzei contigo na rua, pá!
Se não fosse eu precisar de ir buscar o meu puto à escola, quem tinha desviado o olhar primeiro eras tu, oubistes?
Nelson said...
Sobreiro também é bom. Com cortiça. Além de arder devagar faz imenso fumo, irrita nos olhos. Um gajo nem sabe se há-de tossir com o fumo ou se há-de gritar com as dores das queimadelas.
J. Salinas said...
Se calhar sou só eu, mas uma queimada de pneus é que é.