A verdade é que não sou tão mau como me pintam...
Abril de 1889 foi um mês para recordar na história da humanidade. Oito dias depois de Hitler, nascia, a 28, o menino António de Oliveira Salazar que, embora não falasse alemão nem tivesse bigode, também seria rapazinho para obrigar muitas mulheres a casar uma segunda vez. Nascido na aldeia do Vimieiro, concelho de Santa Comba Dão, desde cedo mostrou férrea vontade em moldar o país à imagem do lugarejo que o viu nascer. Isto é, com seis casas de xisto, uma estrada de poeira, muito mato e meia dúzia de casais de septuagenários rabugentos a falar de batatas e couves. Acabou a quarta classe em 1900 (esta informação não interessa para nada, mas experimentem dizer isto em voz alta que é giro), e, poucos anos mais tarde, já era seminarista, tendo todavia mudado depois para Direito. Assim, passou de um possível cargo futuro a divulgar a palavra do Senhor para um possível cargo futuro onde a falta de alma é pré-requisito.
Doutorado em 1918, é eleito deputado por Guimarães alguns anos depois, mas prende o burro e nem se aproxima do parlamento quando descobre que ali mandavam todos por igual. Não obstante o percalço, e crente no potencial desumano do indivíduo, a Ditadura Militar chama-o em 1926 para assumir a pasta das finanças. Durou apenas uns dias esta 2ª aventura, tendo Tó amuado novamente, desta vez porque havia pessoas que mandavam mais que ele. O ponto de viragem dá-se a 1928, quando Óscar Carmona, fazendo uso da única arma democrática que conhecia (a porrada), assume o lugar de Presidente da República Portuguesa. Uma das suas primeiras medidas foi chamar o mimado do António para ir brincar às contas públicas com um lápis e um caderno quadriculado.
Os poderes de Salazar são consideravelmente alargados, e o novo ministro das finanças aceita ficar. Logo na sua primeira época, 1928/29, e através de um rigoroso plano financeiro (basicamente, não se construía nada nem se investia em nada) consegue um saldo positivo nas finanças públicas. Já agora, o campeão nacional foi o Belenenses, batendo na final o União Lisboa por duas bolas a uma, numa partida agradável e bem disputada numa soalheira tarde de Domingo.
Entretanto, Salazar ganha prestígio. Reúne consenso entre uma bela gentalha, nomeadamente os visionários da direita republicana, entre os monárquicos e entre os líderes católicos, ao mesmo tempo que o seu poder dentro do governo de Carmona cresce a olhos vistos. É após uma bela noite de sono com o seu pijama preferido que Salazar tem uma das ideias que o tornariam célebre: criar a União Nacional e acabar, de uma vez por todas, com essa chatice do parlamentarismo. Até porque, afinal de contas, a democracia representativa é apenas um mito equivalente aos gambozinos e não valia a pena estar a perder tempo com aquilo. É criado o slogan ‘Deus, Pátria e Família’, que ainda hoje é inspiração para os anúncios do Azeite Galo, e, em teoria, a União Nacional até seria um movimento de partidos políticos que quisessem servir a pátria. Como bem cedo se percebeu, tal pressuposto estava para verdade como a Margarida Rebelo Pinto está para o Prémio Nobel da Literatura, e a União Nacional era apenas um partido, para não dizer uma pessoa.
Em 1932, Carmona não se ‘esquece’ de Salazar e chama-o para formar governo. Um ano depois, através da constituição de 1933, o nativo do Vimieiro consolida a menina dos seus olhos, um regime nacionalista com mais poderes que o Super-Homem e menos paciência que o Hulk, e onde a liberdade individual seria relegada para segundo plano sempre que entrasse em rota de colisão com os superiores interesses do Estado. Ou seja, bastava dizer “é do superior interesse da nação” e podia-se fazer o que se quisesse. Era como se o governo estivesse sempre numa de despedida de solteiro. À palavra ‘eleições’ é concedido também um novo significado. Carmona é eleito se sete em sete anos, que, por mera coincidência, é exactamente o número de anos de azar que vive quem parte um espelho, e, armado em rei, só sai do poleiro quando morre em 1951.
Entretanto, Hitler perde a jogar ao Risco com o Goebbels e começa a invadir países a sério para provar que afinal percebe da poda. Perante o conflito mundial, Salazar resolve manter Portugal numa posição de neutralidade. É, por esta altura, atribuído então também um novo significado à palavra ‘neutro’, porque, entre outras acções ‘neutras’, Salazar escorraça o embaixador Arisitides de Sousa Mendes, que, como se sabe, concedeu uma série de vistos a judeus maus, pedófilos e com peste bubónica, desviando-os do tratamento gratuito facultado em Auschwitz pelo conceituado humanitário Dr. Mengele. Quando vê o caso mal parado para o lado dos ditadores lunáticos, Salazar lá empresta a base dos Açores aos aliados. Depois, no fim da guerra, e poucos segundos depois de ter ordenado que a bandeira portuguesa fosse colocada a meia haste devido à morte de Hitler, o representante máximo do Estado Novo congratulou-se pelo facto de alguns milhares de pessoas terem sido salvas por acção de Portugal. Com o fim da guerra, e enquanto se esperava que o desfecho da mesma tivesse implicações na realidade portuguesa, Salazar limita-se a retirar a fotografia autografada de Mussolini que tinha na sua secretária. “Faz-nos pensar que, só por isso, já valeu a pena”, terão desabafado em uníssono os aliados e os sobreviventes.
Em 1946, baseando-se no lema ‘mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do povo’ e em jeito de homenagem à GESTAPO, cria a PIDE, uma espécie de professora primária paranóica, que passava as noites em claro e com dedo leve no gatilho. Muitos são acusados de conspiração e passam férias no Forte de Peniche, sobretudo para que, décadas mais tarde, todos nós tivéssemos tido um dia sem aulas passado a visitar as celas onde o Mário Soares e o Álvaro Cunhal tinham jogado à bisca do três. Já em Lisboa, e sempre lúcido, Salazar vive obcecado com a ideia que os comunistas querem instaurar um soviete na Marinha Grande e, a partir de certa altura, tudo o que o atacava era comunista. Micoses e piolhos eram então frequentes militantes de partidos vermelhos.
Dos seus gostos pessoais, sabe-se pouco. Gostava particularmente de mostrar que não era um entusiasta do cinema (especialmente porque os personagens dos filmes não faziam o que ele dizia), mas parece que possuía um carinho especial pelo “Música no Coração”, película a que José Cid foi buscar muito do seu génio, facto que, só por si, é elucidativo quanto ao valor didáctico e cultural do filme em questão. Do que ele gostava mesmo era de ser burro velho, e, a meio dos anos 50, quando países como a Inglaterra, a França e a Bélgica começam a abandonar as suas colónias em África, tendo o desplante de exigir o mesmo a Portugal, o nosso ditador mostrou ao mundo que palavra 'diálogo' só fazia sentido nas telenovelas. Assente na máxima “orgulhosamente sós” (um erro na gráfica trocou esta segunda palavra pela verdadeira, “estúpidos”), Salazar rejeita o abandono e decide punir os separatistas que não percebem que o seu território faz parte de Portugal e que a distância física era resultado de um capricho que a natureza, ao separar os continentes, iniciara milhões de anos antes.
Ano após ano, Salazar lá se ia mantendo ocupado a mandar bater em tudo e todos, especialmente os comunistas que financiavam os separatistas das colónias africanas, os comunistas que financiavam as revoltas estudantis, os comunistas que financiavam as greves, os comunistas que financiavam o Humberto Delgado até este levar um tiro, os comunistas que achavam que um regime feudal não era o ideal para o país, os comunistas que achavam que lhe ficava melhor um risco ao meio, os comunistas que preferiam o John Lennon ao Paul McCartney, etc., etc.
said...
Não explicaste porque é que o raio do utensílio de cozinha se chama Salazar. Só li o este mega texto até ao fim para descobrir isso, e nada.
J. Salinas said...
João, acho que o nome 'Salazar' é oriundo da capacidade que ambos, quer o utensílio de cozinha, quer o ditador, apresentam para rapar. Um, o fundo dos tachos, o outro, os bolsos e a consciência do povo.
Tiago, sei lá se o Delgado era financiado pelos comunistas! Mas sei que o apoiavam. O texto é pouco aberto? Como assim? Achas que estou nitidamente a tomar partido? Achas que fui mais brando com o Salazar do que com o Estaline? Não me parece. Pá, o Salazar sempre teve uma paranóia com a conspiração comunista para o derrubar e via ataques 'vermelhos' em todo o lado. Os comunistas até só entram no texto para mostrar isso mesmo. Nada mais...
said...
E não se come nada nesta casa?
Não almoço há mais de cinco minutos...
J. Salinas said...
O senhor papão também almoça? Longe vão os tempos em que só merendava ao pequeno-almoço...
said...
O Humberdo Bernardo era financiado pelos comunas? Nunca pensei. Juro que nunca mais vou à Festa do Há Vante!!
J. Salinas said...
Uma vez deram-lhe uma senha de refeição para pagar o táxi… 'financiava' é capaz de ser uma palavra um bocado forte…
said...
Certo é que foi uma cadeira que lixou o sr. dr. Oliveira Salazar... hoje em dia, o ainda acontece mesmo com alguns estudantes universitarios. Não é Tiago?
J. Salinas said...
Por acaso sabia, mas acho que quem lhe chamava ‘General Coca-Cola’ até era o Salazar. E faz sentido porque, como qualquer ditador que se preze, só ele é podia pôr alcunhas.
Seja como for, não meti esse ‘fait-diver’ porque o número total das linhas do texto já quase que ultrapassava a percentagem de cérebro que o Salazar manteve inactivo enquanto viveu.