Cada vez mais me convenço que não existem grandes diferenças entre a vida adulta e a infância. Tudo, mas mesmo tudo, na vida adulta não passa de um equivalente de qualquer coisa que já se vivia na existência de gaiato. A única diferença é que, como as pessoas se querem sentir mais adultas, crescidas, sofisticam as dinâmicas, dão-lhes nomes pomposos e sérios. Mas a essência é a mesma. O exemplo mais flagrante é a prática, adulta, da greve de fome como forma de protesto. Afinal, o que é uma greve de fome se não uma mera transposição do “não comer a sopa” para a vida de crescido? Eu, palavra de honra, não vejo grandes diferenças entre um adulto a fazer uma greve de fome porque o tribunal nunca mais lhe resolve o caso e entre um puto que amua em frente ao prato de sopa porque a mãe não o deixou comer os lápis de cera que cheiram mesmo a laranja. A diferença, pelo menos a essencial, reside no nome, pejorativo num caso, revelador do desespero humano no outro, facto que, invariavelmente, torna, aos olhos do mundo, a birra num capricho individual e a greve de fome num caso de vida que merece destaque mediático e solidariedade popular. A grande questão é que os adultos não podem fazer birras, já são crescidos, ponderados e frios, e, nesse sentido, não só recorrem ao truque de lhe – à birra – subverter o nome, como ainda se tornam solidários com quem a faz, ao contrário da dinâmica infantil, em que o petiz é abandonado, desprezado e julgado pelo resto da sociedade.
O Manuel Subtil, quando se trancou na casa de banho da RTP, e disse que tinha uma bomba e “
ai Jesus, saiam daqui e não intervenham, que eu faço rebentar isto tudo!”, mais não fez que actualizar o célebre acto de se fechar em qualquer lado e gritar, para os pais, “Vou ficar aqui sem respirar até me darem aquilo que eu quero!”. As reacções populares a estes acontecimentos? “
Olha-me bem para aquele fedelho malcriado e mimado”, num caso, e “
pobre homem, que, de tanto desespero, chegou a este ponto” no outro. Nunca vi um puto ser aplaudido por uma multidão depois de fazer birra num centro comercial. Não se percebe a diferença de tratamento.
Algumas das formas de acabar com a birra – “resolver a situação” no caso adulto – são também equivalentes. Se um miúdo faz birra numa loja, porque quer não sei quê, o pai ou a mãe vão dizer “porta-te bem por causa da senhora da loja!”. A “senhora da loja” é a versão infantil do “eles” adulto. O “eles” é o culpado de tudo o que de mal acontece na vida de todo e qualquer indivíduo. O homem que faz greve de fome ouvirá, de certeza, da parte das pessoas que o querem convencer a abandonar tão nobre birra, um “Pois, eles não querem saber das nossas razões” seguido de um “
é uma tristeza, mas é assim e não podemos fazer nada, por isso dê lá uma trinca neste pão de leite com fiambre e manteiga”. Com a “senhora da loja” é igual. A “senhora da loja” não quer saber das razões do puto, quer é que ele se cale e não perturbe a paz do negócio. “Eles” também não querem saber. E se não se calam, puto com a mosca e adulto desesperado, a “senhora da loja” e “eles” vão, respectivamente, intervir. E, mais cedo ou mais tarde, é através desta ameaça, da intervenção, que a birra amaina e a greve de fome acaba com uma bifana na roulotte que entretanto se instalara para aproveitar a aglomeração de pessoas.
Um dos mais propalados mitos, envolvendo o nome de Portugal, é o dos pastorinhos e Nossa Senhora de Fátima. Começo já por avisar que sempre confundi, e confundirei, os nomes dos três pastorinhos com os dos reis magos. Depois, como se não bastasse, ainda confundo os nomes dos três pastorinhos entre si, nunca tendo bem a certeza se havia um Francisco ou uma Francisca, um Jacinto ou uma Jacinta, se eram dois rapazes e uma rapariga, ou vice-versa, enfim, matéria para me deixar em acentuada reflexão, e catatónico, durante largos minutos. Também confundo o Abel e o Caim com o David e o Golias, e raramente sei quem matou quem. O que sempre soube é que um dos pastorinhos era a irmã Lúcia, e que foi à volta das suas visões que se ergueu o mito de Fátima. À pala das suas visões, Lúcia tornou Fátima na Las Vegas da religião e, muito provavelmente, vai conseguir sacar uma canonização. Para todos aqueles que querem ser santos – para ter estátuas construídas à sua imagem, pessoas a pedirem-lhe coisas ou um feriado em sua honra em que as pessoas na véspera enchem a mula de sardinhas –, não desanimem, até porque, afinal de contas, não é assim tão complicado como isso. E a história de vida da irmã Lúcia prova-o. Atentai em algumas das avarias que lhe vão garantir um lugar cativo na tribuna de honra do céu.
Avaria 1 – Há quase 90 anos, Lúcia viu Nossa Senhora de Fátima em cima de uma azinheira. Longe de mim ser especialista em milagres, mas, logo para começar, parece-me que Nossa Senhora aparecer em cima de uma azinheira é pouco credível. Imaginem que eram uma entidade divina e tinha uma infinidade de poderes à vossa disposição (multiplicar pães, curar doentes, dividir oceanos, fazer as estátuas em vossa homenagem chorar sangue ou cera, mandar trovoadas, entre outras coisas porreiras). Pá, subir a uma azinheira é muito pouco divino, parece-me. Eu consigo subir a uma azinheira com relativa facilidade e ser visto. E depois há para aí tanta árvore com um ar mais divinal que uma azinheira. Uma acácia, um pinheiro-de-alepo, uma bétula, por exemplo, e só para citar alguns nomes. Não faz sentido uma divindade como Nossa Senhora subir a azinheiras. É como se o Super-Homem passasse multas de trânsito em vez de derrotar vilões que ameaçam destruir o mundo. Portanto, logo aqui, ficamos a saber que a coerência e excepcionalidade do acontecimento que nos pode tornar santos não são critérios decisivos e profundamente investigados.
Avaria 2 – A irmã Lúcia andava sempre com a mesma roupa. Mas isso também o Einstein andava. E a única coisa que a irmã Lúcia fez foi ver algo que até lhe apareceu à frente. Que eu saiba, a teoria da relatividade não se limitou a aparecer à frente do Einstein e, mesmo assim, ele não teve direito a dia de luto nacional na Alemanha, muito menos se fala na hipótese de canonização do cabeçudo.
Avaria 3 – E, por amor de Deus, que segredos são aqueles? Mais coisa, menos coisa, a Rússia tinha, obrigatoriamente, que se deixar de comunismos e socialismos, e passar mas é a adorar o catolicismo, senão o mundo acabava. Ora bem, vamos supor que sim, que Deus achava mesmo que o comunismo seria o princípio do fim do mundo e que a União Soviética, como porta-estandarte da ideologia, tinha que mudar de política para salvar a humanidade. Então, faz sentido que Deus decidisse avisar o mundo do perigo que corríamos e, para fazê-lo, havia que escolher um sítio específico para tornar público esse aviso. O que eu gostava de saber é em que momento da conversa de Deus com os seus conselheiros é que se decidiu que o sítio ideal para avisar o mundo que o fim poderia estar perto era mesmo a Cova da Iria. Melhor ainda: uma azinheira na Cova da Iria. Realmente, de uma azinheira na Cova da Iria ao Kremlin é um instantinho.
Um dos outros segredos seria a visão do Inferno, isto é, a prova de que o Inferno existia mesmo. Nunca duvidei disso. Mas sempre pensei que fosse um sítio onde as almas condenadas tivessem que assistir, para toda a eternidade, ao último episódio de um qualquer novela do Tozé Martinho. Talvez a “Roseira Brava” ou a “Olhos d’água”. Afinal, parece que é mesmo aquilo das chamas e de um senhor corado com uma forquilha. Tudo bem, não contesto. Mas sempre pensei que houvesse mais imaginação e que não se limitassem a seguir estereótipos.
O último segredo seria, com muito boa vontade interpretativa, o atentado ao Papa. Uma das coisas mais lixada do mundo moderno é a pouca pachorra para pessoas que dizem “pois, já sabia” depois das coisas acontecerem. É um bocadinho como aqueles concorrentes d’O Cofre que dizem “Ah, claro, bloqueei, mas sabia. Isto aqui é mais difícil que em casa” e ainda se riem com sobranceria. É triste.
Como se pôde, então, ir constatando, ser santo não exige nada de absolutamente extraordinário, muito menos uma assombrosa imaginação ou um afinadíssimo sentido de coerência. É que, de entre tudo o que se disse sobre a irmã Lúcia, a única coisa que, afinal, bate completamente certo, é credível e irrefutável, é a parte de ter sido uma outra mulher que lhe apareceu para contar segredos. Todos sabemos que faz perfeito sentido uma mulher fazer tudo e mais alguma coisa - neste caso, descer dos céus, ter a chatice de vir à terra -, só para calhandrar com outra.