Vasco Granja é um nome sobejamente conhecido de todos, ou não fosse ele o homem que dava a cara pelos desenhos animados checoslovacos e húngaros (quase sempre mudos e taciturnos) que aparentemente nos ensinavam a, entre outras coisas, abrir latas de atum (ou era de sardinhas?) sem nos decapitarmos e a não meter sacos de plástico na cabeça dos nossos irmãos mais novos. Também se devem lembrar que, após cada animação (normalmente, eram bonecos feitos de plasticina, palitos ou celofane), o avô Vasco explicava-nos exaustivamente que o que tínhamos acabado de ver não era, por exemplo, apenas um miúdo a brincar com um pião partido e uma galinha sem cabeça num celeiro vazio, mas sim uma metáfora demonstrativa dos males que a má distribuição da riqueza acarreta para a humanidade.
Só que a minha geração (e todos nos devemos penitenciar por tamanha afronta) não soube dar o devido valor ao empenhado Vasco e às suas interpretações do cinema de Leste, e, após algumas queixas do género “queremos ver mais bonecos do Bugs Bunny em vez dos do menino no celeiro com uma pala de pirata no olho”, o programa (lembrei-me do nome...era o Cinema de Animação) acabou por ser cancelado. Consequência directa (ou quase), passámos a ter que aturar o Lecas a fingir que tinha a nossa idade, mas, em contrapartida, e em abono da verdade, com películas bem mais populares entre a criançada. Quanto ao Vasco, passou a coordenar todo o departamento infanto-juvenil da RTP e, basicamente, era ele que seleccionava as novas séries animadas que o Lecas iria apresentar, desde que estas não fossem manifestos políticos dissimulados. Se pensam que o VG se ficou, enganam-se, porque a vingança foi servida de forma sublime e saiu pior a emenda que o soneto à déspota RTP. E assim, em vez de aturarmos desenhos animados com personagens que eram sombras e vivam em quintas (sim, os desenhos animados passavam-se todos em ambiente rural), passámos a comer séries modernas e dinâmicas às colheradas. Só que estas tinham mensagens políticas ainda mais claras, e todas na mesma linha das que VG celebrizou no seu Cinema de Animação.
Podemos começar pelos Estrunfes. Eram originários da Bélgica (um país bem visto aos olhos dos administradores da RTP) e ninguém desconfiou. Mas atentem bem nas premissas que sustentam toda a série de Peyo (amigo do peito de Vasco Granja e camarada de lutas partidárias). Ora estes simpáticos bonecos azuis eram claramente um pretexto para elevar os valores de comunidade, companheirismo e equidade social entre todos os homens. Havia sustento para todos, dividiam a riqueza (que era, única e exclusivamente, de natureza alimentar...não havia cá luxos supérfluos) e cada estrunfe tinha uma função definida, exactamente aquela que desempenhasse melhor e que fosse mais proveitosa para a comunidade em geral. Além disso, todos os estrunfes machos andavam em tronco nu (que eu me lembre, só a estrunfina tinha um vestido), o que é um claro indicador que estavam sempre ocupados a trabalhar e a suar pelo bem comum. Ou seja, e seguindo uma teoria que já vi enunciada antes, os Estrunfes eram claramente comunistas.
Inteligentemente, Peyo e Granja acharam que uma série animada com bonecos vermelhos e barbudos a dividir irmãmente os frutos do trabalho comunitário seria facilmente detectada pela censura televisiva de então. Deste modo, os Estrunfes eram azuis para não dar muita bandeira porque, apesar de tudo, ainda estávamos em plena guerra fria e uma propaganda tão evidente à máquina de leste seria certamente mal encarada por algumas facções da sociedade ocidental. Mas a mensagem está lá na mesma. E terá sido por mero acaso que apenas o Papá Estrunfe (que, corriqueiramente, se pode considerar o guia de toda a comunidade) tinha barba e vestia um chapéu e calças vermelhas? Todos os outros vestiam de branco. Não me parece coisa pouca.
Mas a nova táctica não se resumia a desenhos animados. Por exemplo, n´Os Soldados da Fortuna, a vertente marxista-leninista é menos visível, mas está lá. Esta série provou-nos que quatro veteranos de guerra, acusados de um crime que não cometeram, podem sempre refazer a sua vida ajudando os outros, a comunidade. E, como se não bastasse, faziam o bem do melhor modo possível. Ajudavam sempre pessoas humildes acossadas por um homem de negócios sem escrúpulos que queria usar a terra deles para ali desenvolver uma qualquer actividade monopolista. Os Soldados da Fortuna trabalhavam de graça e, aparentemente, estavam sempre em todo o lado, desde que existissem problemas de exploração por parte do patronato. Ah, e nunca, mas mesmo nunca, ninguém se aleijava. Às vezes havia tiros, é certo, mas estes acertavam sempre na arma do mau ou nos pneu dos carros que fugiam com os lucros do trabalho da massa operária. Os carros que capotavam só explodiam depois de todos os seus ocupantes terem fugido para bem longe e, atordoados, serem capturados pelos Soldados.
Aliás, a série foi ainda pioneira na defesa de outras “revoluções” que a Esquerda sempre reivindicou. Por exemplo, ficamos a saber que os planos dão sempre certo (numa clara promoção dos Planos Quinquenais de Lenine), uma vez que o Hannibal Smith exultava, em todos os episódios, a eficácia dos mesmos na propagação do bem e erradicação do mal. A série também nos ensinou que não havia mal nenhum em drogar/embebedar (numa clara alusão a uma despenalização das drogas) outra pessoa para que ela fizesse aquilo que nós quiséssemos (por acaso, era só andar de avião, mas...). Por outro lado, a série procurava também integrar a comunidade homossexual (o Boy George apareceu num episódio) e é graças a esta série que, ainda hoje, muitos de nós torcem pelo B.A. no Rocky III (pugnando-se assim contra os ideais racistas).
Os exemplos são mais que muitos, mas, neste campo, pode-se ainda destacar o trabalho de propaganda desenvolvido durante vários anos pela série O Justiceiro. Esta série procurou quebrar com uma série de estereótipos que as ideologias seguidas por Vasco Granja queriam erradicar de vez. Tal como n’Os Soldados da Fortuna, n’O Justiceiro havia um clara mensagem de combate ao racismo. Em que medida? Nada mais simples. O K.I.T.T. bom era completamente preto e o K.I.T.T. mau era metade branco/metade preto (sim, havia um K.I.T.T. mau e chamava-se K.A.R.R.), ou seja, caía assim por terra a assunção secular de que o preto é mau e o branco é bom (preconceito perpetuado pelos milhões de filmes de ninjas que nós tanto adorávamos). Tá bem, é certo que no período pré-O Justiceiro, já o Zorro e o Batman vestiam de preto, o Darth Vader, apesar de preto, tinha um exército de semelhantes brancos, e o Shaft era preto, mas, mesmo assim, nenhuma série ou filme conseguiu lutar tanto, e durante tanto tempo, contra este preconceito medieval. De realçar que o K.A.R.R só não era completamente branco porque, aconselham os especialistas, o quebrar de um estereótipo deve ser um processo faseado e não feito à bruta, sob pena do preconceito em causa sofrer uma viragem não desejada. Porém, a propagação de pombos por tudo quanto é lado (normalmente, estes ratos alados são de cor azul-escura ou cinza-xunga) deitou por terra todo um trabalho real nesta área, e a cor preta (ou escura) voltou a ser sinal de maldade (ainda por cima, agora com asas e uma visão periférica que parece não vislumbrar cabeças humanas!).
Outra mensagem que O Justiceiro procurou passar para a sociedade foi no campo da integração social daqueles indivíduos que são obrigados (pela máquina capitalista que os explora) a adoptar comportamentos criminosos. Em todos os episódios, sempre que o Michael Knight estacionava o K.I.T.T. e ia fazer qualquer coisa (permanentes, compras de cabedal, etc.), um gatuno abeirava-se do célebre automóvel e tentava assaltá-lo. E o que o K.I.T.T. fazia? Em vez de o prender e hipotecar todo o futuro do larápio (clara crítica ao sistema prisional das democracias ocidentais), optava por um discurso jocoso e irónico que, não raras vezes, reencaminhava o jovem para uma vida dentro dos padrões da legalidade. Mesmo que a eloquência e capacidade argumentativa do K.I.T.T. não funcionassem, um simples entalar de braço no vidro da porta era o suficiente para que o indivíduo em questão não mais voltasse a cair nas tentações do mundo do crime. Já agora, também nesta série, o mal combatido assumia sempre a figura de um homem de negócios que, no caso, queria roubar um chip qualquer (ou um laser) para governar o mundo (ou tornar Cuba numa estância turística tipo Havai).
Em suma, ao invés de termos desenhos animados que, até Vasco Granja os explicar, ninguém tinha percebido serem parte de uma campanha marxista, passámos a ter séries ocidentais com mensagens políticas bastante claras. Utilizando o Lecas como mera marioneta, VG pode ter saído de cena, mas o seu legado continuou ainda com maior pujança e não tenho dúvida que os frutos do seu trabalho de bastidores irão ser visíveis quando a minha geração chegar ao poder.
Só que a minha geração (e todos nos devemos penitenciar por tamanha afronta) não soube dar o devido valor ao empenhado Vasco e às suas interpretações do cinema de Leste, e, após algumas queixas do género “queremos ver mais bonecos do Bugs Bunny em vez dos do menino no celeiro com uma pala de pirata no olho”, o programa (lembrei-me do nome...era o Cinema de Animação) acabou por ser cancelado. Consequência directa (ou quase), passámos a ter que aturar o Lecas a fingir que tinha a nossa idade, mas, em contrapartida, e em abono da verdade, com películas bem mais populares entre a criançada. Quanto ao Vasco, passou a coordenar todo o departamento infanto-juvenil da RTP e, basicamente, era ele que seleccionava as novas séries animadas que o Lecas iria apresentar, desde que estas não fossem manifestos políticos dissimulados. Se pensam que o VG se ficou, enganam-se, porque a vingança foi servida de forma sublime e saiu pior a emenda que o soneto à déspota RTP. E assim, em vez de aturarmos desenhos animados com personagens que eram sombras e vivam em quintas (sim, os desenhos animados passavam-se todos em ambiente rural), passámos a comer séries modernas e dinâmicas às colheradas. Só que estas tinham mensagens políticas ainda mais claras, e todas na mesma linha das que VG celebrizou no seu Cinema de Animação.
Podemos começar pelos Estrunfes. Eram originários da Bélgica (um país bem visto aos olhos dos administradores da RTP) e ninguém desconfiou. Mas atentem bem nas premissas que sustentam toda a série de Peyo (amigo do peito de Vasco Granja e camarada de lutas partidárias). Ora estes simpáticos bonecos azuis eram claramente um pretexto para elevar os valores de comunidade, companheirismo e equidade social entre todos os homens. Havia sustento para todos, dividiam a riqueza (que era, única e exclusivamente, de natureza alimentar...não havia cá luxos supérfluos) e cada estrunfe tinha uma função definida, exactamente aquela que desempenhasse melhor e que fosse mais proveitosa para a comunidade em geral. Além disso, todos os estrunfes machos andavam em tronco nu (que eu me lembre, só a estrunfina tinha um vestido), o que é um claro indicador que estavam sempre ocupados a trabalhar e a suar pelo bem comum. Ou seja, e seguindo uma teoria que já vi enunciada antes, os Estrunfes eram claramente comunistas.
Inteligentemente, Peyo e Granja acharam que uma série animada com bonecos vermelhos e barbudos a dividir irmãmente os frutos do trabalho comunitário seria facilmente detectada pela censura televisiva de então. Deste modo, os Estrunfes eram azuis para não dar muita bandeira porque, apesar de tudo, ainda estávamos em plena guerra fria e uma propaganda tão evidente à máquina de leste seria certamente mal encarada por algumas facções da sociedade ocidental. Mas a mensagem está lá na mesma. E terá sido por mero acaso que apenas o Papá Estrunfe (que, corriqueiramente, se pode considerar o guia de toda a comunidade) tinha barba e vestia um chapéu e calças vermelhas? Todos os outros vestiam de branco. Não me parece coisa pouca.
Mas a nova táctica não se resumia a desenhos animados. Por exemplo, n´Os Soldados da Fortuna, a vertente marxista-leninista é menos visível, mas está lá. Esta série provou-nos que quatro veteranos de guerra, acusados de um crime que não cometeram, podem sempre refazer a sua vida ajudando os outros, a comunidade. E, como se não bastasse, faziam o bem do melhor modo possível. Ajudavam sempre pessoas humildes acossadas por um homem de negócios sem escrúpulos que queria usar a terra deles para ali desenvolver uma qualquer actividade monopolista. Os Soldados da Fortuna trabalhavam de graça e, aparentemente, estavam sempre em todo o lado, desde que existissem problemas de exploração por parte do patronato. Ah, e nunca, mas mesmo nunca, ninguém se aleijava. Às vezes havia tiros, é certo, mas estes acertavam sempre na arma do mau ou nos pneu dos carros que fugiam com os lucros do trabalho da massa operária. Os carros que capotavam só explodiam depois de todos os seus ocupantes terem fugido para bem longe e, atordoados, serem capturados pelos Soldados.
Aliás, a série foi ainda pioneira na defesa de outras “revoluções” que a Esquerda sempre reivindicou. Por exemplo, ficamos a saber que os planos dão sempre certo (numa clara promoção dos Planos Quinquenais de Lenine), uma vez que o Hannibal Smith exultava, em todos os episódios, a eficácia dos mesmos na propagação do bem e erradicação do mal. A série também nos ensinou que não havia mal nenhum em drogar/embebedar (numa clara alusão a uma despenalização das drogas) outra pessoa para que ela fizesse aquilo que nós quiséssemos (por acaso, era só andar de avião, mas...). Por outro lado, a série procurava também integrar a comunidade homossexual (o Boy George apareceu num episódio) e é graças a esta série que, ainda hoje, muitos de nós torcem pelo B.A. no Rocky III (pugnando-se assim contra os ideais racistas).
Os exemplos são mais que muitos, mas, neste campo, pode-se ainda destacar o trabalho de propaganda desenvolvido durante vários anos pela série O Justiceiro. Esta série procurou quebrar com uma série de estereótipos que as ideologias seguidas por Vasco Granja queriam erradicar de vez. Tal como n’Os Soldados da Fortuna, n’O Justiceiro havia um clara mensagem de combate ao racismo. Em que medida? Nada mais simples. O K.I.T.T. bom era completamente preto e o K.I.T.T. mau era metade branco/metade preto (sim, havia um K.I.T.T. mau e chamava-se K.A.R.R.), ou seja, caía assim por terra a assunção secular de que o preto é mau e o branco é bom (preconceito perpetuado pelos milhões de filmes de ninjas que nós tanto adorávamos). Tá bem, é certo que no período pré-O Justiceiro, já o Zorro e o Batman vestiam de preto, o Darth Vader, apesar de preto, tinha um exército de semelhantes brancos, e o Shaft era preto, mas, mesmo assim, nenhuma série ou filme conseguiu lutar tanto, e durante tanto tempo, contra este preconceito medieval. De realçar que o K.A.R.R só não era completamente branco porque, aconselham os especialistas, o quebrar de um estereótipo deve ser um processo faseado e não feito à bruta, sob pena do preconceito em causa sofrer uma viragem não desejada. Porém, a propagação de pombos por tudo quanto é lado (normalmente, estes ratos alados são de cor azul-escura ou cinza-xunga) deitou por terra todo um trabalho real nesta área, e a cor preta (ou escura) voltou a ser sinal de maldade (ainda por cima, agora com asas e uma visão periférica que parece não vislumbrar cabeças humanas!).
Outra mensagem que O Justiceiro procurou passar para a sociedade foi no campo da integração social daqueles indivíduos que são obrigados (pela máquina capitalista que os explora) a adoptar comportamentos criminosos. Em todos os episódios, sempre que o Michael Knight estacionava o K.I.T.T. e ia fazer qualquer coisa (permanentes, compras de cabedal, etc.), um gatuno abeirava-se do célebre automóvel e tentava assaltá-lo. E o que o K.I.T.T. fazia? Em vez de o prender e hipotecar todo o futuro do larápio (clara crítica ao sistema prisional das democracias ocidentais), optava por um discurso jocoso e irónico que, não raras vezes, reencaminhava o jovem para uma vida dentro dos padrões da legalidade. Mesmo que a eloquência e capacidade argumentativa do K.I.T.T. não funcionassem, um simples entalar de braço no vidro da porta era o suficiente para que o indivíduo em questão não mais voltasse a cair nas tentações do mundo do crime. Já agora, também nesta série, o mal combatido assumia sempre a figura de um homem de negócios que, no caso, queria roubar um chip qualquer (ou um laser) para governar o mundo (ou tornar Cuba numa estância turística tipo Havai).
Em suma, ao invés de termos desenhos animados que, até Vasco Granja os explicar, ninguém tinha percebido serem parte de uma campanha marxista, passámos a ter séries ocidentais com mensagens políticas bastante claras. Utilizando o Lecas como mera marioneta, VG pode ter saído de cena, mas o seu legado continuou ainda com maior pujança e não tenho dúvida que os frutos do seu trabalho de bastidores irão ser visíveis quando a minha geração chegar ao poder.